Dia Internacional do Fóssil

11 Outubro 2023

Nesta data celebra-se o Dia Internacional do Fóssil, uma iniciativa da International Palaeontological Association. Na SPdP Sociedade Portuguesa de Paleontologia assinalamos este dia com um texto da autoria de Sofia Pereira (Direção da SPdP) sobre o Didymograptus, o fóssil incluído no design dos materiais do II PaleoPT.

Didymograptus, o graptólito-bengala para quem andarilha pelo Ordovícico português

“Se necessário, eles poderão ser chamados de Didymograpsus – os graptólitos-gémeos” (Sedgwick & M’Coy, 1855). Corria o ano de 1851, bons tempos, quando o britânico Frederick McCoy (1817 – 1899) (Fig. 1) (Sedgwick & M’Coy, 1855), desta forma breve e como quem não quer a coisa, estabelecia o nome (Fig. 1), mais tarde emendado para Didymograptus (ICZN, 1963), deste notável graptólito. Em forma de diapasão ou, se deixarmos de nos armar em eruditos, em forma de gancho de cabelo, com dois ramos simetricamente opostos (daí os “gémeos”), assim é o fóssil escolhido para ser a cara e capa do 2º TYLOSTOMA.  

Há quem o tenha já apelidado de “o mais célebre dos graptólitos” (Rickards & Khashogji, 1999). Representado pela espécie-tipo Didymograptus murchisoni (Beck in Murchison, 1839), definida no País de Gales, na paleofamosa cidade de Builth Wells (Powys), e fóssil-estrela em Abereiddy Bay (Pembrokeshire), talvez o Didymograptus seja o verdadeiro merecedor do título de Príncipe de Gales. Assim como assim, este também não fala galês… Mas antes de contar os detalhes mais íntimos de Didymograptus, é importante perceber o que são os graptólitos.

Figura 1. Esquerda: retrato de Sir Frederick McCoy. Direita: frontispício da publicação onde grafou o nome Didymograpsus.

Mas afinal, o que são os graptólitos?

Há uns anos, poderia começar este parágrafo por “O que foram os graptólitos”. Mas agora não: dizem os entendidos no grupo que o género atual Rhabdopleura é um graptólito (Mitchell et al., 2013), o único que resta destes senhores dos mares de outros tempos. Viveram sempre com pressa: apareceram logo no Câmbrico inferior (Landing et al., 2018) e foi ainda no Paleozoico inferior (Câmbrico–Silúrico) que alcançaram o apogeu, tornando-se o grupo de plâncton mais importante no registo fossilífero desse intervalo de tempo. Foram mais de 100 milhões de anos de reinado. Hoje são um grupo-chave para a datação das rochas do Paleozoico, fósseis de idade por excelência, porque cumpriram a máxima “crescei, multiplicai-vos e falecei, rápido”. Muitas espécies evoluíram e extinguiram-se apressadamente, sendo substituídas por outras num abrir e fechar de estratos, conferindo-lhes a  capacidade de nos indicar um intervalo de tempo bastante restrito para as rochas onde ocorrem. Isto, claro, se as conseguirmos identificar. Boa sorte!

O nome graptólito provém do grego γραπτός (graptós) ‘escrito’ + λίθος (líthos) ‘pedra’ e, de facto, parecem arranhões ou gravuras na superfície das rochas. Os seus fósseis variam de escassos milímetros até colónias com mais de um metro de comprimento. São consensualmente considerados hemicordados, um filo de pequenos animais marinhos. Mas a sua posição filogenética já foi bastante controversa: corais, cefalópodes e até foraminíferos são algumas das ex-famílias de acolhimento destes seres enigmáticos. Hoje parecem não restar dúvidas (Maletz & Cameron, 2016): eram (Rhabdopleura, desculpa, continuarei a escrever no passado) pterobrânquios coloniais, organismos que segregam uma estrutura de alojamento característica, algo que é uma pena que não façamos também, dada a crise na habitação. Cada indivíduo da colónia era um zooide e a colónia crescia pela adição de novos zooides que segregavam tecas, as casinhas individuais, em filinha, todas semelhantes. Cada rua destas casinhas, cada ramo de tecas sucessivas, era um estipe e as colónias podiam ser constituídas por um ou mais estipes. O conjunto completo, isto é, o esqueleto colonial externo, o equivalente do tubário nos pterobrânquios atuais, denomina-se rabdossoma. Havia graptólitos planctónicos e graptólitos bentónicos. O Didymograptus pertencia ao primeiro grupo, os Graptoloidea, que vivia nos oceanos, na coluna de água, filtrando-a para recolher alimento. Talvez por isso tenham tido tanto sucesso: a maioria dos organismos câmbricos era bentónica, vivia no fundo do mar, sobre o substrato. Portanto, no início do Ordovícico, os graptoloides tinham a coluna de água por sua conta, para colonizá-la à vontade. 

Os rabdossomas teriam natureza escleroproteica, provavelmente de colagénio, pelo que os fósseis de graptólitos se conservam mais frequentemente como moldes ou como películas carbonosas e, sobretudo, em sedimentos depositados em fundos anóxicos. Por isso são tão abundantes em rochas de granulometria fina e cor escura, ricas em matéria orgânica, particularmente em fácies de xistos negros, onde podem ainda surgir piritizados ou fosfatizados no interior de nódulos.

Mais haveria para contar, até porque, de certo modo, não literal, a Rhabdopleura está para os graptólitos como o Nautilus está para as amonites: as suas existências na atualidade permitem inferir muitos detalhes da vida íntima das formas extintas. Mas não percamos o foco: o Didymograptus.

Figura 2. Ilustração de Graptolithus Murchisoni, espécie definida pelo naturalista dinamarquês Henrik Henriksen Beck (1799-1863) que viria a justificar o estabelecimento do género Didymograptus por Frederick McCoy.

E sobre o Didymograptus, o que há para saber?

O Didymograptus pertence aos Dichograptina, uma subordem ordovícica que apareceu durante o Tremadociano, há cerca de 480 Ma, e se extinguiu no Sandbiano, há cerca de 455 Ma. Dentro deste intervalo, o género está restrito ao Ordovícico Médio, concretamente ao Andar Darriwiliano, biozonas Didymograptus artusPseudamplexograptus distichus. O rabdossoma do Didymograptus é constituído por dois estipes, simétricos, monosseriados (fileira de tecas apenas de um dos lados do estipe), com disposição pendente, conferindo-lhe a tal morfologia de gancho de cabelo (Fig. 3). Na versão mais recente do Treatise on Invertebrate Paleontology (Maletz et al., 2018), o mais famoso tratado de Paleontologia, indicam que o género ocorre (ipsis verbis e por esta ordem) na Bélgica, Reino Unido, República Checa, França, Alemanha, Noruega, Espanha, Suécia, China, norte de África, Arábia Saudita, Austrália ocidental, Bolívia, Colômbia e Peru. Sou uma patriota incorrigível, mas já consigo não hiperventilar quando Portugal é tratado pelos autores estrangeiros como se pertencesse a Espanha. Ou pior, como se não existisse e a Europa terminasse em Badajoz. Este lapso é um clássico nas listas de ocorrências.

Figura 3. Cima: morfologia dos graptólitos graptoloides, slide de Carlos Marques da Silva. Esquerda: representação usada no Nº2 do Tylostoma boletim informativo da SPdP.

Didymograptus cá por casa

Eu não percebo nada de graptólitos. A minha relação com os ditos é de puro interesse: quem trabalha no Ordovícico da Zona Centro-Ibérica conhece bem o alívio que é encontrar um fóssil de Didymograptus, uma espécie de microssonda em tempo real (e gratuita!) que grita Ordovícico Médio, Llanvirniano, Oretaniano, “Schistos de Orthis Ribeiroi”, Brejo Fundeiro, Formação Valongo, Formação Moncorvo! Foi este o primeiro graptólito a ser documentado em Portugal, pelo Daniel Sharpe, que todos já conhecemos de outras andanças (Pereira, 2022). Em 1849, no trabalho pioneiro dedicado à geologia dos arredores do Porto (Sharpe, 1849), Sharpe identificou na atual Formação Valongo do Ordovícico do Anticlinal de Valongo, com dúvidas, Graptolithus Murchisoni? [sic], nome original da espécie-tipo de Didymograptus. Só vinte anos depois voltamos a ter notícias do grupo por cá, pela mão de Nery Delgado (Delgado, 1870) (1835-1908), que se tinha iniciado no estudo dos fósseis do Paleozoico português, para não mais parar. A utilidade de Didymograptus é posta em evidência com a seleção deste género para o nome de uma das suas divisões litobiostratigráficas, os “Schistes à Didymograptus” (Delgado, 1908), mais tarde adotada também por João Carrington Simões da  Costa (Costa, 1931) (1891-1982), nos seus “Xistos com Didymograptus Murchisoni e nanus, e Diplograptus” e “Xistos e grauvaques com Didymograptus Murchisoni e bifidus”.  O século XIX teve ainda a divertida contribuição de João Bonança (Bonança, 1887) (1836-1924) na sua ‘Historia da Luzitania e da Iberia’, uma abordagem bizarra e original, onde escrevia assim: “Os graptolithos teem na historia da vida um papel curto, porém interessante e sympathico. Nas laminas de schistos, em que eles hoje se nos revelam, deixaram-nos, como que doce e correctamente desenhados a lapis, os contornos de suas  figuras e a instructiva exposição da sua curta e trabalhosa existência”. Ah, pura poesia graptolítica!

É provável que a primeira figura publicada de um Didymograptus português seja a de Décio Thadeu (1919-1995), em 1956 (Thadeu, 1956), num trabalho que deu à estampa as trilobites de Arouca e no qual se marimbou um pouco no tamanho das ditas (Freud que se pronuncie…). Depois dele e até aos dias de hoje, seguiram-se vários artigos, teses e livros onde vários exemplares portugueses foram sendo figurados. Ainda assim, os mais impressionantes continuam nas gavetas de museus ou nos armários de colecionadores, porque contam-se pelos dedos de uma mão sindáctila os que se especializaram no grupo em Portugal. O primeiro foi Carlos Romariz (1920-2018), não por opção, mas porque foi esse o tema que lhe saiu na rifa, estrategicamente sugerido pelo conhecido geólogo Carlos Teixeira, para a dissertação destinada a provas para Professor Agregado: os Graptólitos do Silúrico Português. A verdade é que, saindo da sua área de conforto, Carlos Romariz tomou-lhe o gosto e durante a década de 1960 constituiu obra que ainda hoje é referência. Do Didymograptus publicou pouco (Romariz & Gaspar, 1968), até porque se concentrou sobretudo no Silúrico. Quem o conheceu, contou-nos que Romariz “percorreu o país de comboio e calcorreava quilómetros na procura de exemplares, partindo os xistos pela xistosidade” (Freitas, 2022). Poucos anos depois, foi a vez de Jacinto Correia Perdigão (1914-2004), que incumbido da cartografia de várias regiões da Beira onde afloram formações ordovícicas, rapidamente se agarrou aos graptólitos como um farol biostratigráfico. Não se chegou a especializar no grupo, mas produziu uns quantos contributos (e.g. Perdigão, 1965). Atualmente, o único especialista do grupo em Portugal é José Manuel Piçarra, que se doutorou no tema e se dedica há várias décadas aos graptólitos portugueses, particularmente aos silúricos.

Hoje o Didymograptus é conhecido em (quase) todos os locais onde afloram níveis do Oretaniano (o antigo Llanvirniano da gíria geológica portuguesa) na Zona Centro-Ibérica: de Valongo a Moncorvo, de Arouca a Penha Garcia, do Buçaco a Portalegre, passando por Dornes, Fajão, Mação e Vila Velha de Ródão. Marca duas biozonas: a de Didymograptus artus, do Oretaniano inferior, e a de Didymograptus murchisoni, do Oretaniano superior e há níveis onde dificilmente se encontra algo mais para além de rabdossomas e estipes isolados e fragmentados de Didymograptus (Fig. 5).

Figura 4. O Didymograptus nas publicações portuguesas dos primeiros 100 anos: a) Nery Delgado (Delgado, 1870); b) Carrington da Costa (Delgado, 1908); c) Décio Thadeu (Thadeu, 1956) (Didymograptus artus, o primeiro Didymograptus figurado em Portugal); d) Carlos Romariz (Romariz & Gaspar, 1968); e) Jacinto Correia Perdigão (Perdigão, 1965).

Figura 5. Didymograptus sp. da Formação Brejo Fundeiro, em Brejo de Cima (Pampilhosa da Serra, Sinclinal de Fajão-Muradal).

Curiosidades

Sabiam que, embora graptólitos seja atualmente o nome mais utilizado em Portugal, nem sempre foi assim e que há quem ainda lhes chame graptolites? A versão graptolites foi a primeira a ser grafada na literatura portuguesa, por Nery Delgado em 1870 (Delgado, 1870), que os mencionava como substantivo masculino – “os graptolites”. Na primeira metade do século XX, também Carrington da Costa adotou o termo graptolites, mas optou pelo género feminino – as graptolites (Costa, 1931). Sendo professor de Paleontologia na Universidade do Porto, é expectável que os seus alunos tenham adotado o mesmo termo, de que são exemplo os “Apontamentos de Paleontologia” da professora Judite dos Santos Pereira, do ano letivo de 1960-1961 nesta mesma instituição. Em meados do século XX, na Universidade de Lisboa, Carlos Teixeira, ainda que formado na Universidade do Porto, usava o termo graptolitos.  Ao mesmo tempo, na Universidade de Coimbra, Miguel Montenegro de Andrade, ainda que tendo sido aluno de Ciências Geológicas na Universidade do Porto, opta pelo termo graptólitos na sebenta de Paleontologia do ano letivo de 1952/1953. 

Tendo em conta que a palavra vem do grego “líthos”, os linguistas dirão que, atualmente, se deve adotar a terminação “litos”, como em escatólito, coprólito, espongólito, estromatólito ou osteólito. Mas, sem fundamentalismos, diria que este “Diz-me como dizes, dir-te-ei quem te ensinou” é mais interessante do que regras de linguística. Afinal, a diversidade sempre foi o que fez o mundo avançar.

Sofia Pereira (Direção da SPdP)
Outubro de 2023

Referências

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